Luta diária
Uma década de amor ao próximo
Comunidade Terapêutica Renascer celebra dez anos com mais de cinco mil tratamentos realizados
Gabriel Huth -
“É uma nova gestação. Como se eu fosse nascer de novo.” Com estas palavras, Michel resume seu processo de tratamento na Comunidade Terapêutica Renascer, que completou uma década de atuação em Pelotas no último domingo. Ao todo, costumam ser nove meses de tratamento, que podem ser prolongados a 12 ou interrompidos prematuramente sem completar a reabilitação. Hoje estão em tratamento 32 pessoas no tripé trabalho, disciplina e espiritualidade. A Renascer é uma instituição sem fins lucrativos e considerada de utilidade pública.
Quando a sirene toca, é um aviso aos atuais habitantes para o momento de oração, ou para o momento de trabalho, ou ainda as refeições. Cada atividade é previamente programada e está num quadro, delegando responsabilidades a cada um deles. Os banhos são cronometrados, homens não podem ficar sozinhos com mulheres, e, caso alguma das 64 regras de convivência seja desrespeitada, a multa aplicada é um dia ou um final de semana de trabalho ou lavar a louça de todos numa refeição, conforme o caso.
Olhando para trás, dona Neiva Vargas, 62 anos, fundadora da Renascer, vê diversas vidas modificadas com a interferência da comunidade. Homens que saíram e constituíram uma família. Mulheres que hoje têm um emprego e levam uma vida normal. “Se o trabalho de uma vida recuperar uma só vida, já é cumprida a missão”, diz.
Todo o trabalho desenvolvido no local é voluntário. Neiva é mãe de dois dependentes químicos que, na época, conseguiram atendimento apenas na Região Metropolitana de Porto Alegre. Lá, Neiva viu a necessidade de ter algo parecido em Pelotas para ajudar outras famílias na mesma situação. “Aqui dentro é uma escola. Lá fora que é a prática do que aprendem aqui”, explica.
Cotidiano
Na Renascer eles fazem quatro reuniões diárias de espiritualidade, onde é lido um trecho da Bíblia e são cantadas músicas de louvor a Deus, sem definir uma religião específica. Além destes encontros, onde cada um comenta o que está sentindo, pensando ou passando, também são revezados turnos de trabalho.
Ao todo, são cerca de quatro horas por dia de trabalho, dividido entre afazeres domésticos, cozinha, horta, cuidado com animais e construção de novos espaços na comunidade. No tratamento é seguido o programa 12 passos e, após seis meses de internação, começa o processo de reinserção na sociedade e na família, alternando uma semana na Comunidade e outra em casa.
Dificuldades para manter
Hoje a instituição encontra dificuldades para manter aluguel, alimentação e gerência sobre o espaço. Conforme Luciano Vargas, um dos administradores, não há apoio do setor público municipal. Algumas obras que estão sendo feitas no local, todas com a mão de obra dos próprios internos, são graças a parcerias com o Brechó Jurídico, o Rotaract, ligado ao Rotary Club, e ao Banco de Alimentos de Pelotas.
Cada pessoa e família contribuem conforme as condições financeiras, além da ajuda de entidades. Recentemente, foram furtadas do local todas as galinhas, que forneciam cerca de 20 ovos diários aos moradores. Outra necessidade da comunidade é uma roçadeira para o corte dos extensos gramados do pequeno sítio, a cerca de 20 quilômetros do Centro.
“Preciso lidar comigo mesmo”
Marione tem 57 anos e está internada no local há seis meses. Alcoólatra, ela aguarda a próxima semana, quando voltará a encontrar toda a família em Rio Grande. Lá é esperada pelo marido, três filhos e quatro netos. Sobre a Marione que chegou e a Marione de hoje, ela confirma: “Mudou tudo. Até o meu raciocínio, memórias voltei a ter. Aqui é bom porque um ajuda o outro. Se eu vejo alguém meio pra baixo, pensando em desistir, ir embora, vou lá e tento convencer ele do contrário. Alguns até me chamam de mãe”.
“Antes eu era indisciplinado, explosivo, não tinha aceitação. Já tinha perdido a dignidade, estava perdido na vida. Moralmente, espiritualmente. Como se eu tivesse só no meio de uma multidão. Eu sou família, quando sair quero priorizar minha recuperação, a manutenção do tratamento e viver uma rotina de família, tomar chimarrão com eles, passear com minha namorada.” O depoimento é de Michel, que tem 27 anos e está na comunidade há quatro meses após se viciar em crack. “Preciso lidar comigo mesmo. A gente não tem como fugir de nós”, refletiu, após momentos em silêncio pensando na resposta. Michel toca violão nos encontros espirituais e corações ao falar sobre sua vida.
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